Imaginação em experiência coletiva: da infância ao larp
(publicado originalmente no site www.norteandovc.com.br, 23/6/16)
Quantos de nós, na correria do dia-a-dia moderno, não nos queixamos – ou ouvimos queixas – de que as relações humanas estão rasas, que o individualismo se sobrepõe à vida em comunidade?
Não falo apenas de estar próximo das outras pessoas, mas de realmente ouvi-las, senti-las. Seria o ato de verdadeiramente participar de uma experiência com outras pessoas, sem estar com a cabeça ocupada em outros assuntos distantes.
Há algumas semanas tive um insight, depois de passar o jantar brincando com meu afilhado, de dois anos de idade e sua prima um ano mais velha que ele. Sabe aquele momento da brincadeira de imaginação que você percebe que estão todos completamente envolvidos com a narrativa, a ponto de você descrever uma terra fantástica e perceber que os olhos das crianças brilhavam como se estivessem de verdade enxergando aquele cenário mágico?
Discutir em que momento da vida ou porque a gente perde essa capacidade de empatia uns com os outros é algo a ser ponderado por cada um. Mas gostaria de reforçar que existem momentos e atividades que resgatam esse sentimento, essa capacidade de interagir com atenção ao próximo e permitir que a imaginação coexista com a realidade.
Recordo, a princípio, da minha infância, onde meu irmão e eu brincávamos que o coqueiro que havia nos fundos da casa era um monstro do porte de Godzilla (famoso personagem do cinema de ficção japonesa) e de como ele era bastante real para nós enquanto perdurava a brincadeira.
Bastava um instante de sintonia na imaginação para que as barreiras da incredulidade caíssem. Vivíamos grandes aventuras no quarto, fugindo de criaturas espaciais, combatendo vilões malignos e escapando de armadilhas elaboradas.
Já esteve em uma roda de histórias de terror à noite, em uma fogueira em um sítio, no pátio da escola ou mesmo em sua sala de estar? Não tem aquele momento que mesmo sabendo que as histórias ali contadas são ficções, você acaba sentindo um medo real? Invariavelmente alguém do grupo resolve que não é uma boa ideia contar mais histórias, diante do clima de terror, e mesmo assim todos insistem em continuar?
Não importava o medo, o susto, porque na verdade era isso mesmo que o grupo buscava quando se propôs a compartilhar esse tipo de história. Ou seja, mesmo que não tenha sido dito abertamente em palavras, havia um combinado, uma espécie de acordo entre os participantes que era a chave para que o clima se manifestasse; motivado não só pelas histórias, mas pela vontade de cada um em participar, ouvir e ser ouvido, visualizando e vivenciando junto do contador de histórias os causos ali narrados.
Já estive em jogos de RPG (Role Playing Game) onde foi possível compartilhar dessa sintonia, mais de uma vez. Em uma oportunidade, a aventura se passava em um cenário de fantasia medieval, e o narrador conseguia, ao descrever o mundo e seus desafios, fazer com que a gente se envolvesse muito com a narrativa. Quando havia um perigo eminente, como os perigosos dragões, ele colocava uma música de ação com o auxílio de um toca-cds, e imediatamente a gente sentia um calafrio correr pela espinha e a adrenalina aumentar. Todos eram capazes de visualizar o dragão e a história se tornava muito empolgante, com a participação de todos.
Mas foi durante os larps onde vivenciei as experiências coletivas mais intensas, onde – por algumas horas – imaginação e realidade se misturam em um momento genuíno.
No larp “Sombras da Guerra” (Confraria das Ideias, 2014) dois grupos de militares se encontravam em uma instalação abandonada. Os participantes encarnavam personagens que estavam à beira da insanidade, presos em um local obscuro e cercados de perigo ao redor. No entanto, era as relações internas, de confiança, trauma e sobrevivência o verdadeiro estopim que permeava a trama. Posso dizer que fiquei muito impressionado com as expressões faciais, os olhares e as ações dos participantes, havia uma dedicação especial de cada um na experiência que suportava a imaginação e ação do próximo, potencializando as experiências pessoais. Havia ainda uma cuidadosa cenografia para ajudar na ambientação.
Já no larp “O Magnífico nos céus do amanhã” (Confraria das Ideias, 2009), a trama se passava a bordo de um zeppelin. Em um determinado momento da história, o dirigível sofria danos, perdia estabilidade e começava a cair – não literalmente. Dessa forma, não bastavam apenas os efeitos especiais que criamos para simbolizar o acidente (com fumaça e sonorização), mas foi preponderante o engajamento e a sintonia de todos os participantes para que o clima da aventura se materializasse, com personagens se agarrando aos pilares, se protegendo no chão e ainda cambaleando pelo espaço (até conseguirem um pouso seguro).
Já o larp “Monstros” (Luiz Prado, Boi Voador, 2015), eu estive como participante e pude testemunhar uma experiência bastante intensa, onde cada um teve a oportunidade de encarnar seus monstros interiores. A imersão, a cenografia, a sonorização, e – mais uma vez – a cumplicidade dos participantes foram determinantes para que o clima perfeito fosse instaurado para a interação. Acreditávamos, mesmo, estar caminhando em uma terra onde os monstros viviam e eram reais.
De certa forma, os larps (e os jogos de representação, como os RPGs) podem funcionar como resgate da infância, dessa sintonia na imaginação. Quando o narrador faz a introdução da história, a imersão, todos escolhem acreditar e embarcar na proposta, desatando os nós das amarras que a autodefesa de cada um cria durante a vida.
É valido destacar que a organização do larp tem papel importante, sobretudo para gerar um ambiente propício para o jogo proposto, seja no texto, no design do jogo, em eventual cenografia, na construção dos personagens, montagem de som e iluminação (se necessário), com regras entendidas por todos participantes e limites de cada um respeitados.
Mas somente cenários e figurinos (muitas vezes improvisados) são insuficientes para que essa sintonia na imaginação que me refiro ocorra: é necessário o desejo de se envolver com a trama, com a proposta do larp. O engajamento, unido a todos os recursos que a organização julgue importante para a experiência planejada, tornam possível que ela seja vivenciada em sua plenitude e, assim, que todos possam levar para suas vidas lembranças de momentos mágicos, com histórias transformadoras, coletivas, puras em sua essência – especialmente no que diz respeito a permitir que a imaginação possa ser compartilhada – como era comum nos tempos de criança.
Uma empatia que faz falta, e que pode ser um caminho para nos levar a ouvir e perceber melhor o próximo.
Texto: Confrade Godoy
Revisão: Paulo Renault
Confraria das Ideias: facebook.com/confrariadasideias
Boi Voador: www.boivoador.com.br
Revisão: Paulo Renault
Confraria das Ideias: facebook.com/confrariadasideias
Boi Voador: www.boivoador.com.br
Deixe um comentário